“Quem sabe se eu tivesse
menos melanina”: já
no primeiro verso, Eduardo traz à tona o maior problema da adoção no Brasil: a
questão racial. Ainda
que o número de interessados em adotar apenas crianças brancas tenha caído, os
dados ainda são alarmantes.
“Há sete anos, vegeto no
depósito dos rejeitados, desde que me encontraram dentro de um saco plástico”: Assim como muitas crianças que vivem em
abrigos, Eduardo também foi encontrado em um saco plástico.
“Mesmo sem alimentar a
balística com FAMAS, fui condenado aos traumas do abandono de incapaz”: segundo a Wikipédia,
“balística é a ciência que estuda o movimento dos projéteis, especialmente das
armas de fogo, seu comportamento no interior destas e também no seu exterior,
como a trajetória, impacto, marcas, explosão, etc., utilizando-se de técnicas
próprias e conhecimentos de física e química, além de servir a outras
ciências”. FAMAS é um rifle francês e significa “Fuzil de Assalto da
Manufatura de Armas de Santa Ettiene”. Mesmo não tendo relação
alguma com armas, Eduardo foi mais uma vítima do artigo
133 do Código Penal.
“Não tô incluso nos dados
sobre adotado pretendido, o ‘x’ é na cor branca e no cabelo liso”: 29% dos
pretendentes só aceitam adotar crianças brancas.
“Casal de boy não quer tá no
restaurante jantando, com polícia colando, achando que é sequestro relâmpago.
De ir no shopping explicar pro segurança seguindo: ‘o menino negro tá comigo,
não é bandido, é meu filho’”: você se lembra do caso do menino
de 7 anos vítima de racismo numa concessionária no
Rio de Janeiro, não se lembra?! Após o episódio, os pais do garoto criaram a
página “Preconceito racial não é mal-entendido” no Facebook.
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Página criada pelos pais do garoto logo após o "mal-entendido" |
“No máximo eu consigo ser
apadrinhado por um doador que dá pra ONG alguns centavos. Pro bebê loiro é
adoção, direito à infância. Pro neguinho, colaborador mensal à distância”: muitas
das crianças que vivem em abrigos são apadrinhadas, recebendo doações mensais.
Na maioria das vezes, são crianças que possuem poucas chances de serem
adotadas.
“O meu perfil afro só é da
hora pra elite em companhia da Madonna ou do Brad Pitt”:
dois famosos, que estão sempre em evidência, com filhos adotivos negros.
“Pelo ECA, meu martírio
tinha que ser temporário, não a porra de um vitalício calvário”: no
primeiro verso da segunda estrofe, Eduardo trata do artigo 4º do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), que diz: “É dever da família, da comunidade, da
sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Apesar de gozar
dos direitos do ECA, o sofrimento de Eduardo parece nunca ter fim, é vitalício.
“Em média, em um ano, um
vira lata deixa o instituto de zoonoses e ganha uma casa. Sociedade se preocupa
com bem estar de cachorro, mas que se foda se o preterido aqui tá vivo ou
morto. Que se foda se ele tá nutrido, sente frio, se tá fazendo curso preparatório
pra fuzil”: P - E - S - A -
D – O!!!
“Cansei de ver as Pajero se
afastando do jardim, levando aqueles que chegaram bem depois de mim”: nessa
parte, fica explícito que, quem adota, em sua maioria, tem
uma ótima condição financeira. Provavelmente branco
adotando criança branca, que, mesmo chegando ao abrigo bem depois de Eduardo, é
adotada pelo simples fato de ser branca.
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Dados de março de 2013 mostram a ótima condição financeira de quem adota |
“Talvez minha mãe era outra
adolescente grávida engrossando a estatística vergonhosa da pátria. Outra de
libido sexual despertado pela televisão que põe criança no pancadão, descendo
até o chão”: em
2011, 25 mil meninas entre 10 e 14 anos deram à luz e 440 mil jovens entre 15 e
19 anos tiveram gravidez indesejadas.
“É foda só saber o que é higiene,
carinho e sorriso quando um promotor de justiça visita o abrigo. Pro alvará de
funcionamento não ser cassado, nessa data, dão banho, perfumam e até dão afago”:
Eduardo alerta sobre as más condições em que muitas crianças vivem nos abrigos.
“Sou candidato a tá na
cracolândia com a pele marcada pelo selo de qualidade da Fundação Casa. Quem
não recebe sobrenome no RG, ganha artigos 121 no DVC”:
sem o apoio e o sobrenome da família (biológica ou adotiva) no RG, sem qualquer
expectativa de vida, há uma grande possibilidade de Eduardo entrar para o mundo
do crime. O jovem pode cumprir pena na Fundação Casa até os 18 anos e após, ganhar
artigos 121 (matar alguém) no DVC (Divisão de Vigilância e Captura).
“A mina que, depois de
gozar, cê mete o pé no rabo, pode carregar no ventre o próximo desamparado”:
...
“Eu me sinto um produto
descartável dispensado no depósito dos rejeitados. Esperando alguém pra chamar
de pai, esperando alguém pra chamar de mãe”: só o refrão já
bastaria pra entender a mensagem que Eduardo quer passar, mas ele vai além. A
cada estrofe, impressiona e emociona ainda mais o ouvinte.
Apesar
de todos os versos e os casos citados, muitos acreditam na ideia de que não
existe racismo no Brasil. O próprio Senado Federal, com o texto “Racismo
na adoção é mito nacional”, é um exemplo de como querem diminuir
a luta contra o preconceito racial no país. É, Eduardo tem razão: “O homem
estragou tudo...”
Assista
ao clipe de “Depósito dos rejeitados”, lançado nesta quinta (5).
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